terça-feira, 25 de setembro de 2007

O engolidor de fogo

Peço licença a minha companheira de trabalho, a brilhante jornalista Sílvia Salgado, para postar um artigo seu, brilhante como vários que ela tem escrito, e que com certeza brevemente irão estampar a capa de algum livro.

Sílvia Salgado

O engolidor de fogo

Marido rico, dois filhos adolescentes,cachorro chic, apartamento de andar inteiro, casa na praia, três cartões de crédito, closet imenso de roupa, outro só de sapatos. Pelas suas contas deveria ter uns 250 pares; não usava nem um terço, é verdade, mas tinha compulsão por um salto, e daí? Gostava, podia e pronto. Não era feliz, nem infeliz e procurava não pensar sobre essa coisa de felicidade. Sua mãe desde pequena ensinou-lhe que a vida é pra ser vivida, e não fuxicada. "Se procurar, você encontra", era a frase que mais ouvia desde que se entendeu como gente. O maridão saía com outras mulheres, mas se no começo doía, o tempo fez com que se acostumasse. Teve dois relacionamentos fora do casamento com amigos em comum. Um troca-troca meio que natural no mundo em que transitava. Mas foram coisas rápidas que no fundo trouxeram mais frustração do que prazer. Decididamente não nascera para trair, embora todos à sua volta o fizesse.

Mas, numa hora qualquer do dia, no auge de uma festa, no meio de um filme ou passando baton, em frente ao espelho, Beto vinha-lhe à cabeça. Ele fora o primeiro namorado, o autor do primeiro beijo, do primeiro amasso, do primeiro pecado. Era lindo, moreno, livre das convenções da época, sonhador e aventureiro. Namoraram por três anos, fizeram planos, escolheram nomes dos filhos que teriam, projetaram morar num sítio, plantar e colher, entre discos, livros e o canto dos pássaros. Numa noite ele chegou dizendo que o pai havia sido transferido para Curitiba, implantar uma fábrica lá. Estava de partida, mas voltaria para buscá-la. No começo muitas cartas, telefonemas mas depois Beto sumiu no mundo. Cinco anos depois soube que os pais dele haviam morrido e ele, rumo ignorado



Já casada, com dois filhos, um dia acompanhou o marido a um congresso em Curitiba. Lá empreendeu uma busca pelo paradeiro do homem amado. Procurou no catálogo, perguntou nas lojas, nos bares, assim como quem não quer nada. Afinal, o pai dele era um engenheiro renomado. Quem sabe alguém não teria uma pista? Nada. Voltou decepcionada e tocou a vida para frente, mais sempre pensava, "E Beto"? Em noite escura como breu, o céu pontuado de estrelas, ela debruçava-se na janela e fazia a pergunta, olhando para o cosmo: "onde andará Beto"? Tinha época em que fantasiava que ia ligar a televisão e vê-lo tocando guitarra ou violão – ele era bom nos dois instrumentos. Em outra ocasião achava que ia abrir o jornal e ver uma crítica de um livro de Roberto Bernardo. Na juventude ele fazia poesia, contos e crônicas e sonhava em ser escritor. Numa noite, ela voltando do shopping, parou num sinal enquanto um homem e um garoto engoliam fogo. A cena não era comum na cidade; tinha visto malabares e engolidores de fogo só no Rio e em São Paulo. Ficou prestando atenção e de repente, quando o cara apagou a tocha com a boca, ela fixou o olhar e apesar dos estragos do tempo e da vida, não teve dúvidas: era Beto. Ele se dirigiu ao carro ao lado para apanhar moedas e o menino veio em sua direção. Ela ficou paralisada, muda, o sinal abriu e uma onda de estridentes buzinas fez com que engatasse a primeira no carro e saísse dali.

Parou lá na frente, coração disparado, boca seca e nenhuma dúvida: era Beto. Podia viver mil anos que o reconheceria: aquele olhar, o queixo quadrado, o cabelo comprido, agora grisalho, o andar desengonçado e charmoso. Fez o contorno, voltou e lá estava o homem e o menino exercendo o ofício dos desvalidos pela sorte: tentar sensibilizar as pessoas nos sinais de trânsito, numa noite fria, de vento sul. Ela estacionou na esquina e quando o sinal abriu, encontrou-o na calçada. Os dois se olharam. "Beto!", disse com voz trêmula. Ele ficou em silêncio por alguns segundos e respondeu com um "olá" constrangido e emocionado. Ficaram se olhando, se medindo, ela avaliando o que havia restado daquele homem que guardara por mais de 20 anos. Ele estava envelhecido para idade, maltratado e faltava-lhe um dente. Tentou puxar conversa. Ele foi curto e grosso: "Vá embora, menina. Eu tenho que voltar ao trabalho". Ela ainda tentou falar da sua busca, dos anos que aguardara aquele encontro quando o sinal fechou e ele voltou com os seus apetrechos para o meio da rua. No percurso para a casa as lágrimas caíram fartas, tão fartas que molharam a blusa, escorreram pelo decote e fizeram cócegas entre os seios. Entrou em casa com a cara inchada, trancou-se no banheiro, encheu a banheira de água quente e ficou por lá com olhar perdido, sensação de vazio no peito, lágrimas fazendo buraquinhos na espuma branca. Mais tarde, encolhida na cama, abraçou-se ao marido, chorando. Ele quis saber, insistiu de maneira carinhosa, deu-lhe um calmante, insistiu outra vez para que ela falasse. "Não posso", choramingou. "Como – pensou – eu vou dizer que hoje perdi para sempre o grande amor da minha vida"? E, em silêncio, sentiu o tamanho do buraco que aquele encontro abrira em sua alma...

2 comentários:

Mayhara disse...

=~~~
vou me afogar de tanto chorar

Bruno Tapajós disse...

até eu que sou 0,001% romântico me sensibilizei :)