domingo, 18 de novembro de 2007

Da finitude.

Giuditta con la sua ancella (1613-14), de Artemisia Gentileschi.


Há uma dorzinha que se sente bem no meio do coração quando se leva um fora, como uma pequena bolha que entope um átrio ou um ventrículo; não há na cultura, laica ou secular, dos liberais aos monges tibetanos, o conhecimento preciso de como extirpar essa dorzinha. Uns dizem que só o tempo cura, outros que só um novo amor, já ouvi dizer que a dor é um processo cósmico e tudo faz parte do mesmo uno nos levando a acreditar que dor e alívio são todos componentes da mesma sensação ou seja não existe dor, e por aí vai. Então, se você vai se arriscar – porque ela é linda, ela é demais – é aconselhável antes um check-up, pois tudo que dói combina com morte, e depois de morto, já sabe, não tem volta. Pros incréus, dois exemplos significativos:


Caso nº 1: a escada.

Jorge foi naquela festa já sabendo que ela estaria lá. O ambiente prometia, era uma dessas festas onde todo mundo pega todo mundo e o conceito de ficar atinge mares nunca dantes navegados. Nesse caso, não importa o preço, não importa que a long-neck custe cinco pila, porque sempre se sai com um souvenir. Mas Jorge não é o que se chama de colecionador – Don Juan passa longe – logo comprou uma bebidinha antes pra esquentar sem chegar trocando as pernas. As músicas tocaram, as luzes piscaram, e lá pelas duas da manhã ele encontrou seu benzinho recostado no corrimão da escada. Troca de olhares, tudo com muito amor, estrelas piscando no céu lá fora, sequer trocaram palavras. Toda longa caminhada começa com um passo a frente, e depois desse passo Jorge se viu pendurado no pescoço de sua amada. Dois beijos depois, ainda com aquele sorriso bobo colado nos lábios, ele ouve a primeira manifestação da garota:

“Vou descer pra procurar minha amiga.”

“Vou contigo.”

“Deixa que eu procuro sozinha.” – e se desvencilhando, desce sem o rapaz.

Daí, já viu, aquela pontada começou a crescer dentro do coraçãozinho de Jorge, a ponto de ele trocar a esquerda pela direita e cucar o terceiro, o segundo e o primeiro degrau da escada, em seqüência. Resultado: fratura da terceira vértebra, traumatismo craniano, luxação do pulso direito e um canino a menos.


Caso nº 2: nosso apartamento.

Tenho pouco medo de afirmar que, de boa fé, só se começa um relacionamento tendo em vista sua permanência e estabilidade. Tiago e Caio namoraram por seis meses até decidirem morar juntos, e tendo decidido, assim foi por uns bons três anos. Mas, apesar da boa fé e de se darem bem, nem toda permanência tende ao infinito. Desta feita, Caio escolheu um nublado dia de inverno para “conversar” com Tiago, porque sempre se escolhem dias nublados para essas conversas por criarem um certo mood, como nos filmes. E como na ficção, Caio já havia preparado suas malas, reservado um hotel e, feito grande arquiteto de seu destino, esperava sentado do outro lado da mesa. O então pequeno e franzino Tiago varou porta a dentro já pressentindo sua desgraça e carregando no olhar tanta aflição a ponto de quase fazer Caio desistir de seu intento. Porém, decidido que estava, o algoz largou sua caneca de chá de marcela com mel e hortelã, para em seguida proferir as seguintes palavras:

“Tiago, eu vou ser direto porque acho que é a maneira mais justa de se fazer isso. A verdade é que não quero mais morar contigo, alguma coisa se perdeu e não há mais motivo para continuarmos juntos. É bastante frustrante, eu sei, e por algum tempo acredito que não devíamos sequer nos falar, mas... – e chorou – eu... – soluçou – bem... foi muito bom te conhecer, é uma pena que já não seja... eu já não possa... adeus.”

Levantou-se e foi embora. Tiago ainda gaguejava alguns sons esquisitos, balançava a cabeça e dava passos sem destino pela casa quando a porta se fechou. A dor aumentava enquanto ele chorava em seu leito conjugal, quando, no fim de suas forças, espumou e teve um derrame. Encontraram seu corpo gelado ainda na mesma posição fetal três dias depois, fedendo.